Made in Brazil

No início de 1943 uma frota naval norte-americana descia o litoral da América do Sul em missão especial quando chegou ao Rio de Janeiro. Os Estados Unidos haviam sido atacados pelos japoneses um ano e meio antes e os norte-americanos estavam vigilantes com a aproximação dos alemães num território comandado por Vargas e Perón. Era essencial estabelecer uma zona de boa vizinhança e esta frota representava não apenas uma advertência mas também uma convocação. O comandante da frota era John Ford, o grande cineasta, agora também Almirante, que viajava ao lado de seu parceiro, o fotógrafo Gregg Toland. Os dois foram recebidos festivamente pela comunidade cinematográfica e convidados a visitar as viagens de MOLEQUE TIÃO, o primeiro filme produzido pela Atlântida Cinematográfica, criada por Moacyr Fenelon, José Carlos Burle, seu irmão Paulo Burle e o conde Pereira Carneiro, dono do Jornal de Brasil. O filme tinha direção do estreante José Carlos Burle e roteiro do também estreante Alinor Azevêdo.
HOW COME? A BRAZILIAN MOVIE?

foto de John Ford

O Cinema Brasileiro já existia desde o início do século vinte como um esforço apaixonado, artesanal, pré-industrial, produzindo comédias de costumes, dramas e musicais e em seu repertório já contava com três clássicos de alto mérito (“Limite”, de Mário Peixoto, “Ganga Bruta” e “Favela dos meus Amores”, ambos de Humberto Mauro).
Os ilustres convidados, John Ford e Gregg Toland, se mantiveram silenciosos durante a filmagem, se impressionaram com Grande Otelo (quem não?…) e murmuraram impressões entre si. Sobre o quê conversavam? Não se sabe mas eu imagino:

– Mas Ford, é impressionante como eles conseguem resolver todos esses problemas!!! E de uma forma tão simplificada!!! Não dá pra acreditar!!!.
– Toland, você mesmo já teve que iluminar com apenas um refletor! Não lembra?…Eles estão inventando um Cinema, tal como nós o fizemos, só que tínhamos uma indústria por trás e parece que isso não é o caso deles!!!

O entusiasmo do trabalho impressionou a dupla e, meses depois, quando voltaram da missão, souberam que “aquele” filme, MOLEQUE TIÃO, já estava em cartaz e foram vê-lo no cine Vitória, na Cinelândia. Saíram surpreendidos com o resultado e Ford fez questão de cumprimentar o diretor José Carlos Burle e o fotógrafo Edgar Brasil

João Carlos Burle

MOLEQUE TIÃO não mais existe, vítima de um incêndio – um dos inúmeros títulos perdidos do cinema brasileiro. Seu autor, Alinor Azevêdo, ficara impressionado com o filme “João Ninguém”, dirigido pelo grande ator Mesquitinha em 1935, que trazia Grande Otelo num papel secundário e mais ainda quando leu a reportagem “Otelo não tem culpa” assinada por Samuel Wainer e Joel Silveira, editada na revista “Diretrizes”. MOLEQUE TIÃO conta enfim a estória do moço que saiu de Minas ( o próprio Otelo) com a intenção de ser um artista na cidade grande e encontra todo tipo de dificuldades e preconceitos até conseguir o reconhecimento.

Alinor Azevêdo

Alinor Azevêdo manteve-se como o maior de nossos roteristas até a sua morte aos 60 anos. Autor de “Na Senda do Crime” (a meu ver o mais preciso dos filmes da Vera Cruz), “Tudo Azul”, “Cidade Ameaçada” e pinceladas em “O Assalto ao Trem Pagador”, entre vários títulos.
José Carlos Burle, pernambucano, filho de usineiros, cineasta e músico (autor dos clássicos “”Meu limão, meu Limoeiro” e “Cabocla”) realizou 19 filmes longos em 21 anos de atividades, entre eles sucessos como “Falta Alguém no Manicômio”, comédia musical, “Também Somos Irmãos”, abordando conflitos raciais, “Maior que o Ódio”, melodrama policial Noir , até Terra sem Deus”, de temática social.

Grande Otelo

O Cinema Brasileiro tentou encontrar um perfil industrial de produção em várias oportunidades, também unindo forças com o exibidor, até que em 1946 fosse criada uma lei de reserva de mercado para escoar sua produção dentro de nossas fronteiras, revogada no governo JK por pressão externa. Um mercado anexado aos interesses do cinema norte-americano, tendo até mantido por décadas na cidade do Rio de Janeiro a figura de um “embaixador” da Motion Pictures Association, (leia-se Departamento de Estado), mr. Harry Stone, que aparentemente abdicava de sua americanidade para tornar-se uma folclórica figura carioca.
A luta pelo próprio espaço se estendeu por muitos anos até conseguirmos criar uma agência reguladora, a Ancine, hoje novamente ameaçada.
A vitalidade do nosso Cinema sempre contou com a nossa capacidade de se reinventar diante dos apuros. Um cinema de vocação popular e simultaneamente experimental, que se alastra hoje por todo o território nacional. Cem anos de sonhos e lutas permanentes antecedem o ciclo do “Cinema Novo” e o reconhecimento internacional por sua originalidade. Uma comunidade de milhares de artistas e criadores. Inventores.

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